22 de fevereiro de 2021

B4 diariodolitoral.com.br Segunda-feira, 22 DE fevereiro DE 2021 Cultura AA Isto não é uma biografia. Desde o início, Joyce Carol Oa- tes deixa claro o que seu livro não pretende ser. Não lhe de- vem cobrar nomes precisos, dados de vida pesquisados a fundo, depoimentos “objeti- vos” ou análises de caráter so- bre a personagem. Mas então o que é Blonde? Talvez um ro- mance de invenção, talvez um ensaio ficcional sobre Norma Jeane Baker, depois conhecida comoMarilynMonroe. Talvez ambos. Toda vida, qualquer uma, é de uma complexidade an- gustiante. Ainda mais a de uma pessoa pública, que sai do nada, vira uma superestre- la durante cerca de 10 anos e morre jovem, aos 36. Quemfoi MarilynMonroe? - é a pergun- ta irrespondível que funciona como motor interno de Blon- de, obra lançada originalmen- te em 2000 e editada agora, no Brasil, pela HarperCollins (a Rocco lançouuma tradução em 2010). O projeto é ambicioso ao extremo. Muito mais do que sepropusesse a chamada “bio- grafia definitiva” da atriz. Oa- tes quer ir além. Deseja sondar não apenas os fatos exteriores da trajetória de Marilyn, mas nadamenos que a sua subjeti- vidade. A sua verdade interna, por assim dizer. Nesse processo de descida (ou subida) à subjetividade de uma persona pública, Oates usa quase o tempo todo o re- curso do monólogo interior. O romance (vamos chamá-lo assim) transcreve o que pen- sa Norma Jean de tudo o que lhe acontece, das pessoas que conhece, dospequenos egran- des fatos, e, sobretudo, de si mesma É como virar a perso- nagemao avesso e fazê-lapen- sar emvoz alta uma vida inte- rior que todos, ilusoriamente, imaginam conhecer. Dessa forma, os fatos ex- ternos, ainda que importan- tes, funcionam apenas como marcas do caminho, forman- do uma espécie de esqueleto imperfeito daquela alma em transe. Seriam como referên- cias “factuais” dessavida inter- na emebuliçãoque a escritora supõe em Norma Jean. Esses fatos balizam a trajetória, em esboços rápidos. A infância com a mãe instável, Gladys. O pai desconhecido, mas a me- nina é induzida a pensar que se trata de figura importante em Hollywood. A internação de Gladys numa clínica psi- quiátrica, a filha enviada para um lar de órfãos. A mãe que não permite a adoção defini- tiva, forçando a adoção tem- porária por um casal. O casa- mentoprecoce e rapidamente encerrado pela guerra. A dificuldade de sobrevi- vência, as fotos de calendário, nuas, que lhe permitem pa- gar as contas, precariamen- te. As primeiras chances em Hollywood. Otraumático abu- so sexual praticado por um produtor. Algumas aparições rápidas em filmes e um pa- pel um pouco maior - mas já marcante - emuma das obras- -primas de John Huston, O Segredo das Joias (1950). Em seguida, dois papéis de pro- tagonista em Almas Deses- peradas (1952) e Torrentes de Paixão (1953). Este último, em particular, a transforma em celebridade nacional. Estrela Fascínio por Marilyn Monroe BLONDE. Livro é misto de romance de invenção com ensaio ficcional Norma Jeane Baker, mais conhecida como Marilyn Monroe: atriz arrasou corações nos Estados Unidos e no mundo todo DIVULGAÇÃO polêmica, capaz de despertar o desejo dos homens e a ira de ligas femininas, que a denun- ciam como “imoral” O primeiro volume de Blonde se detém nesse pon- to - o segundo será lançado no segundo semestre.Marilyn interpreta a fatal Rose Loomis emTorrentes de Paixão e vive, à trois, um romance comdois rapazes filhos de celebridades, CharlieChaplin Jr. e EddyG. (fi- lho de Edward G. Robinson). A ideia do livro surgiu quando Joyce Carol Oates, nome sempre lembrado para oNobel de Literatura, viuuma fotodeNorma Jeane Baker aos 15 anos, radiante e virginal, com uma coroa de flores no cabelo castanho e um meda- lhão no pescoço. Como essa garota iria se transformar na uma adaptação de Blonde a ser produzida pela Netflix em 2021. Epor umilustre cineasta, Andrew Dominic. Sua versão do meu romance concentra- -se em apenas alguns episó- dios selecionados entre vá- rios, mas apresenta Marilyn Monroe como uma mulher explorada, desfalcada damais elevada reputação que deve- ria ter tido como excelente atriz, além de ter seus rendi- mentos usurpados. Os leitores contemporâneos poderão ter mais simpatia por uma prota- gonista feminina que suporta muitas das humilhações ex- postas hoje pelo movimento #MeToo. Você acredita que Ma- rilyn Monroe, como ícone cultural, sobreviveria às ce- lebridades de hoje? Quais são os elementos que tor- namMonroe uma figura tão duradoura? Joyce Carol Oates - Sim, parece que MM é atemporal. A imagem dela está no Twit- ter com frequência. Ela pa- rece ser mais popular como ícone americano do que El- vis Presley e Muhammad Ali. Surpreendentemente, não há tanta atenção dada a Audrey Hepburn (que era uma séria rival de MM nos anos 1950, quando um novo tipo de be- leza feminina começou a ser destacado, mais esbelta e me- nos “loira” do que MM). Nem mesmo a ultraglamourosa Eli- zabeth Taylor, tão famosa em sua época, é tão popular nas redes sociais quanto MM. A trajetória de Marilyn Monroe continua desper- tando atenção e já há mui- tos anos, tanto antes quanto depois de suamorte. Apartir de suas pesquisas, é possí- vel explicar esse eterno fas- cínio? Você descobriu algo que a tenha surpreendido? Joyce Carol Oates - Aci- ma de tudo, fiquei surpre- sa em perceber como MM era excelente atriz. Parte da Marilyn foi uma estrela polêmica, capaz de despertar o desejo dos homens e a ira de ligas femininas, que a denunciam como “imoral” minha pesquisa incluiu as- sistir a todos os filmes dela que estavam disponíveis - um número considerável. Ao contrário de Ava Gardner, Elizabeth Taylor e outras es- trelas da época, MM estava sempre tendo aulas: atuação, canto, dança. Ela ambiciona- va se tornar uma atriz de tea- tro séria e atuar em peças de Chekhov. Outras estrelas de cinema eram indiferentes ao fato de poderem “atuar” - MM estava sempre tentando se aprimorar. Fiquei surpre- sa, mas também desanima- da com a relutância de seus contemporâneos em Holly- wood em reconhecer que MMerauma atriz tãoversátil, na verdade uma comediante brilhante (basta ver Quanto Mais Quente Melhor). Esse foi umlivro emocio- nalmentedifícil de escrever? Joyce Carol Oates - Sim! Vejo que você percebeu isso. Comominha protagonista es- tava fadada a morrer aos 36 anos, senti que ambas estáva- mos nos arremessando a uma espécie de túnel... Enquanto namaioria dos romances o es- critor pode exercitar sua ima- ginação, emum livro baseado emuma vida real, não há des- vio, nem destino alternativo Além disso, meu querido pai estava morrendo enquanto eu trabalhava no romance, e a tristeza de perdê-lo permeia particularmente os últimos capítulos. Você tem alguma ideia sobre o motivo de algumas celebridades sucumbirem às pressões, enquanto ou- tras são capazes de lidar com isso? Joyce Carol Oates - Nem todos os indivíduos são tão “protegidos” psicológica e emocionalmente quanto os outros. Por não ter tido pai e sua mãe ser muito perturba- da e pouco confiável, sofrendo de uma doença mental, MM não teve o amor verdadeiro dos pais, ou mesmo de uma família, o que a teria torna- do uma pessoa mais confian- te. Ela continuou procurando por umpai - ela chamava seus maridos de “papai” (e atémes- mo seu primeiro marido, que era adolescente quando se ca- saram). MM era claramente muito carente, o que se tradu- zia emuma personalidade in- finitamente desejável na tela: umabelamulherque também era infantil, inocente e vulne- rável (EC) . diva sexy e lasciva, de voz sus- surrante e seios fartos, objeto de desejo do sexomasculino e dedesprezo e invejadogênero feminino? Norma Jeane poderia ter sido uma garota americana qualquer, comumdestino ba- nal pela frente: lar,marido e fi- lhos. Não foi assim. E por que não? Eis o mistério. De fato, como imaginar um destino tão invulgar? E, no fundo, tão trágico? Des- sa subjetividade imaginada, emerge uma personalidade tão poderosa como frágil. Ca- paz de abrir caminho em cir- cunstâncias muito desfavo- ráveis, tendo de enfrentar o ambientemachista tóxico em que a oportunidade profissio- nal se paga como próprio cor- po. Garota ingênua, mas lei- tora de Stanislavski, Freud e Kierkegaard. Capaz de enten- der suas personagens melhor que o cineasta John Huston e Louis Calhern, o veterano ator shakespeariano com quem contracena em O Segredo das Joias. Cheia de inibições e complexos e, no entanto, apta a exercer com alegria a liber- dade sexual descoberta após anos de repressão. Esta é aMarilyn imaginada por Joyce Carol Oates. Uma es- pécie de símbolo da América, mas também a sua negação. Uma criatura sensível e inte- ligente, avesso do estereótipo de loira burra, lasciva e des- truidora de lares. Retrato ver- dadeiro ou não, mas muito convincente epoderosamente escrito, Blonde nos reaproxi- ma de Marilyn, e a coloca em outra perspectiva. Passamos a vê-la com outros olhos - e issonão é pouco. Sobre o livro, Joyce respondeu, por e-mail, às seguintes questões. Após 20 anos de publica- ção, como você analisa o li- vro hoje? Joyce Carol Oates - É em- polgante saber que haverá Oates deseja sondar não apenas os fatos exteriores da trajetória de Marilyn, mas nada menos que a sua subjetividade

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