2 de agosto de 2021

A8 diariodolitoral.com.br Segunda-feira, 2 DE agosto DE 2021 Até onde se sabe, o pri- meiro longa-metragem de ficção realizado por uma cineasta negra no Brasil é “Amor Maldito”, de 1984, di- rigido por Adélia Sampaio. Só três décadas mais tarde outros filmes de ficção assi- nados por mulheres negras ganharam distribuição co- mercial no país. É o caso de “Café comCa- nela”, de 2017, que Glenda Nicácio dirigiu lado de Ary Rosa. E agora de “Um Dia com Jerusa”, de Viviane Fer- reira, que estreia na última segunda (26) no catálogo da Netflix. É uma conquista histó- rica. Não por acaso, a his- tória está no centro do fil- me, realizado inicialmente como curta (“O Dia de Jeru- sa”, 2014, exibido no Festi- val de Cannes) e refilmado em versão ampliada graças a um edital federal de 2016, que apoiou três longas de baixo orçamento de direto- res negros – Ferreira foi a únicamulher contemplada. O roteiro se concentra no dia do aniversário de 77 anos da personagem-título, brilhantemente interpreta- da por Léa Garcia. Morado- ra do bairro paulistano do Bexiga, ela aguarda os fami- liares para um bolo quando recebe a visita inesperadade Sílvia, deDéboraMarçal, que faz pesquisas de mercado. O questionário dá ense- jo a um mergulho no ema- ranhado de histórias coleti- vas ligadas ao percurso de Jerusa e seus antepassados e despontamlembranças da escravidão, das origens do Bexiga, de carnavais passa- dos... Jerusa conta que herdou o nome da avó, negra ladi- na que mantinha no braço a marca do brasão do anti- go dono. Ao chegar à cidade O roteiro de ‘Jerusa’ se concentra no dia do aniversário de 77 anos da personagem-título, brilhantemente interpretada por Léa Garcia DIVULGAÇÃO Filme ‘UmDia com Jerusa’ chega com sabor de conquista histórica GRITO DE LIBERDADE . Obra combate prisões estéticas, como a associação de personagens negros a trajetórias de tristeza e violência vinda de um cafezal, a avó de Jerusa trabalhou como lavadeira às margens do Sa- racura, córrego atualmente canalizado. Através de relatos e ima- gens do passado, bemcomo de fragmentos do presente das protagonistas em seus trajetos pela região central de São Paulo, a narrativa evoca situações de precon- ceito, violência policial, luto. Nempor isso amargor eme- lancolia dão o tomdo filme. O que sobressai é a ele- gância de Jerusa/Léa Gar- cia a enfeitar seu bolo de aniversário, o cuidado para abrir forminhas de brigadei- ro, os gestos precisos com que arruma a mesa para as visitas. Comalegria, a perso- nagemtransmite asmemó- rias deuma família que exis- tiu e existe –algonada óbvio num contexto em que pre- dominam notícias de lares negros desfeitos, violência, injustiça, precariedade. As fotografias guardadas no sobrado de Jerusa têm papel fundamental na nar- rativa. O talento comas len- tes, passado de geração a geração, não só contribuiu para provar a existência des- sa família negra de classe médiamas para afirmar sua vocação artística. Como diz a professora do cursinho de Sílvia logo no início do fil- me, “ser mulher negra dis- posta a sonhar é o que há de mais subversivo neste país”. “UmDia comJerusa” éde fato o produto do encontro entre mulheres negras so- nhadoras,maiorianoelenco e na equipe técnica. Nascida emSalvador em1985, Vivia- ne Ferreira mudou-se para SãoPaulo aos 19 anos e estu- dou cinema e direito. Desde março, dirige a Spcine, em- presamunicipal de fomento ao desenvolvimento do au- diovisual na capital paulista. A carioca LéaGarcia inte- grou o Teatro Experimental do Negro, grupo idealizado porAbdias doNascimento, e atuou em filmes emblemá- ticos, como “Orfeu Negro”, de 1959, do francês Marcel Camus, e “Ganga Zumba”, de 1963, de Cacá Diegues, em que sua personagemCipria- na é uma espécie de porta- -voz da liberdade. “Um Dia com Jerusa” pode ser visto como umgri- to de liberdade contra pri- sões estéticas, como a as- sociação de personagens negros a trajetórias de tris- teza e violência. Quando Jerusa penteia o cabelo crespo de Sílvia, uma herançanãoconsanguíneae imaterial está sendo trans- mitida. Esse legado envol- ve a grande família formada pela diretora e seu elenco, mas também por teóricos e poetas negros que povoam sutilmente o longa, como Luiz Gama, Lélia Gonzalez e Adélia Sampaio. (LúciaMon- teiro/FP) Cultura “Um Dia com Jerusa” é produto do encontro entre mulheres negras sonhadoras, maioria no elenco e na equipe técnica Quando Kali Uchis decidiu gravar umálbumemespanhol, sua gravadora americana, a In- terscope, desistiu de trabalhar na divulgaçãoda obra. “Na ver- dade, meu contrato dizia que só discos cantados em inglês contariam. Então, disseram que eu estaria por conta pró- pria, que não teria apoio”, diz a cantora. “Sin Miedo (del Amor y Otros Demonios)” saiu no fim doanopassado, dandosequên- cia ao álbum“Isolation”, quase todo em inglês. Se o disco de 2018 posicionou Uchis como um dos nomes em ascensão damúsica alternativa america- na, foi cantando em espanhol que ela rompeu a barreira do mainstream. “Sin Miedo” levou Uchis a se tornar a primeira mulher em quase dez anos a alcan- çar o primeiro lugar da parada latina com uma música sem participação de americanos - o hit “Telepatía”. A faixa também chegou à décima posição entre as músicas emalta nomundo, segundo a Billboard, fora as centenas de milhões de repro- Kali Uchis abriu mão da indústria para cantar na língua espanhola “Sin Miedo (del Amor y Otros Demonios)”: foi cantando em espanhol que Kali Uchis rompeu a barreira do mainstream DIVULGAÇÃO duções no streaming. “Achava que seria um pro- jeto pessoal, uma paixão, algo que eu realmente queria fa- zer. E achava que faria muito menos sucessoque ‘Isolation’”, dizUchis, que nasceunos Esta- dos Unidos, mas, filha de pais colombianos, viveu nos dois países durante a infância e a adolescência. “Isolation” conta com par- ticipações de jovens estrelas do hip-hop e do R&B da costa oeste americana, como Steve Lacy, doThe Internet, Thunder- cat e Tyler the Creator, alémda britânica Jorja Smith. O disco ainda levou Uchis à escalação do Lollapalooza Brasil de 2020, cancelado pela pandemia. Hoje, ela afirma que não escuta mais o álbum. “Ouço apenas a música que estou fa- zendo. Équenemquandovocê vê uma foto sua no ensinomé- dio -as roupas que você usava, as pessoas que estavam com você. Não sei, mas não é como você se sente agora.” Bem recebido pela crítica, “Isolation” revelouUchis como habilidosa cantora de umR&B moderno, suaveeesteticamen- te rico. O disco passeia orga- nicamente por influências da música eletrônica, do soul e do funk americanos. Em “Sin Miedo”, a cantora continua a mesma, mas o en- torno está diferente. Ela abre comvocais graves eumbongô, evocando um bolero cubano dos anos 1960 popular comos Los Zafiros, “La Luna Enamora- da”. Daí em diante, Uchis rei- magina seu universo a partir de um olhar latino que antes aparecia só demaneira tímida. “Sei que só canto uma mú- sica em espanhol no primei- ro disco, mas isso é uma parte muito grande de mim. Cres- ci e fui à escola na Colômbia, aprendi a ler e escrever em es- panhol antes de saber inglês. E tive a experiência de cres- cer em dois países diferentes, ir à escola em países diferen- tes e ser uma cidadã desses países. Não era só uma ques- tão de identidade, mas, artis- ticamente, de explorar todas essas dimensões que existem emmim.” Essa experiência de vida ao mesmo tempo que torna Uchis uma artista única, aca- bou dificultando sua inserção na indústria fonográfica. “Não tinhamúsica tocando na rádio, nunca tive, eles sem- pre me disseram que eu seria uma artista de nicho, porque nãome encaixoemnada. Todo mundo falava ‘ela é daqui ou de lá?’, ou ‘isso temmuitos gê- neros diferentes envolvidos’, ou então ‘a voz dela é muito estranha’. A conclusão é que eu seria algo de nicho. Disse- ram que eu teria minha base de fãs, mas nunca daria lucro.” Curiosamente, ao contrário das previsões dos executivos, “Telepatía” estourounoTikTok e chegou a ser a quinta músi- ca emascensão nas rádios pop dos Estados Unidos. “Foi muito surpreendente quando ‘Telepatía’ virou esse sucesso. Meu objetivo era só mostrar lados diferentes de mim mesma, expandir meu alcance vocal e o que eu pode- ria fazer com a música. Explo- rar amúsica latina de um jeito diferente e homenagear amú- sica que cresci ouvindo.” (FP)

RkJQdWJsaXNoZXIy NTg0OTkw